Summer reading list.
1. Dark Places - Gillian Flynn
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1. Dark Places - Gillian Flynn
As minhas vizinhas do segundo andar vão mudar de casa. Só fico eu e a outra do terceiro andar. Não vão mudar-se para uma distância dramática, é já na rua em frente, não vão ficar prisioneiras do seu próprio T3. Contudo, e por alguma razão misteriosa, sinto que é o fim de uma Era. O fim de um Éon.
No primeiro ano em que morámos juntas, eu costumava invadir o apartamento delas, sentar-me no chão entre as camas com os meus apontamentos de anatomia. Alguém se sentava a enrolar cigarros num canto, alguém lia tomos sobre microeconomia, bebiam-se umas cervejas com vista para Lisboa menina e moça, comiam-se uns tremoços. E eu adormecia no soalho frio, a babar-me sobre uma almofada sebosa do Benfica, acordava de madrugada e arrastava-me silenciosamente escadas acima até à minha própria cama. Alguém se escondia dentro do guarda-fatos para fazer telefonemas, alguém matava mosquitos em pleno Verão com uns chinelos enfiados nas mãos (eu), alguém adormecia em cama alheia com um artigo sobre peritoneu precariamente equilibrado sobre a face (de novo eu - vêm o tema "a dormir em locais indevidos"?). Chegámos a ser acusadas por outras vizinhas de levar a cabo festanças com substâncias ilegais a altas horas da noite. (Enquanto na verdade estávamos reunidas em volta de uma mesinha de cabeceira a comer amendoins. Wild.)
No segundo ano em que morámos juntas, ajudámo-nos umas às outras a vestir o pijama em diversos estados de intoxicação, efectuamos higiene dentária reciprocamente, deslocámos as nossas celebrações para o café do bairro e não hesitámos em fazer interventions em alturas de extrema necessidade. Bebeu-se poncha da Madeira. Nesse ano, não houve Semana Académica, mas houve cantar na rua às duas da manhã. Houve sustos, riso histérico e danças eróticas com garrafas de água ao som de música brasileira.
No terceiro ano em que morámos juntas, houve quem chorasse, houve quem gritasse. Coleccionaram-se copos de plástico peganhentos de bebidas alcoólicas pouco indentificáveis para se beber mais uma cerveja, só mais uma. Dormimos no Outono tostadinho do Alentejo, fomos a velórios e apresentaram-se namorados à família. A dona da amofada sebosa celebrou um campeonato e ninguém teve ressentimentos. Escreveram-se fitas, comeu-se bolo e bebeu-se champanhe. Fizeram-se planos a longo prazo e a curto também.
As minhas vizinhas do segundo andar vão mudar de casa. É já ali. Até já.
É incrível como já na minha década dos 20 muitas das frases começam por: "Eh pá, lembras-te..." E acabam com um gigantesco e pesado ponto de interrogação que fica ali a pairar em cima da mesa do restaurante, debaixo da luz apropriada para casais, a ameaçar cair dentro do meu copo de sangria. Estas memórias evocadas não se limitam a pessoas, mas a momentos incrivelmente específicos. Surpreendo-me constantemente pela quantidade de coisas importantes que nunca cheguei a reter e a absurdidade de detalhes absolutamente menores que estão tão frescos como quando os vi pela primeira vez.
Também tenho uma espécie de Mind Palace. É uma sala muito particular onde são sempre seis da tarde, há um retrato do Liszt na parede. Dois pianos. Cortinas pesadas. Peitorais em granito sob janelas altas e estreitas. Há manchas de verniz das unhas na porta e no chão. Quando se presta atenção ouve-se sempre o mesmo excerto de Chopin, em loop perpétuo. As mesas estão dispostas em U e eu estou sempre sentada num canto, de frente para a porta que raramente abre e é escondida por um quadro gatafunhado de escalas e intervalos e ditados dos clássicos que um CD qualquer tocou. Cheira a partituras velhas, cadernos rasgados e resina. Naquelas mesmas cadeiras critiquei dedos partidos, mini-saias, namoradas, professores, decisões, e cantei pessimamente linhas melódicas atonais. O que me fascina é a forma como associo as minhas memórias a esse sítio onde já não entro há anos. Sei que ainda existe, que as mesas já não estão em U, que os pianos já devem ter sido movidos e afinados, já outros pés pisaram a carpete que não os meus. Mas na minha cabeça, aquela sala será para sempre o local ligeiramente poeirento dos meus 13 anos. Tocam-me no ombro, eu viro-me e sorrio a uma pessoa que está sentada ao meu lado e é em si uma memória. Pergunta-me porque estou tão pensativa hoje. Hoje que é o mesmo dia da última vez que visitei as coisas de que me lembro. Hoje que é aquele longuíssimo dia de Maio. Digo que não se passa nada, abro o caderno - as minhas unhas estão roídas - procuro a memória que me interessa nas entrelinhas.
Já fui uma gaja que escreveu muita coisa em muitos blogs e que já se importou com a opinião alheia. Agora o que me apetece mesmo é documentar esta parte da minha vida para no futuro mostrar aos netos e, espero eu, para o entertenimento de quem quer que seja que ainda deambule por aqui (bless you).
Continuo a viver no terceiro andar. A janela continua a ter vista para a bandeira portuguesa no Parque Eduardo VII, toda patriótica a dar a dar. Neste momento, alguém está a usar o bidé mesmo por cima do meu quarto, o que é um bom agoiro da higiene das minhas vizinhas. Continuo a não tirar o pijama se não vou sair de casa. Continuo a caminhar em direcção ao Juramento de Hipócrates.
Mas amanhã tenho doentes para ver porque o curso não tem piedade (inserir Bon Jovi a cantar we're halfway theeeeere), leio mais livros, ouço mais música, tenho mais paciência. Há mais calhamaços na prateleira. Tenho o cabelo mais curto. Deixei de beber chá porque me dá azia.
Apetece-me escrever banalidades da minha vida e reflectir sobre coisas provavelmente inconsequentes para o resto do mundo. Vamos lá testar a minha persistência.
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