Li e pensei coisas - Gone Girl & Dark Places
Na minha experiência enquanto leitora, é raro pousar um livro com a sensação acre de ter um profundo ódio por todas as personagens que povoam o imaginário daquelas páginas. Mas é aquele ódio tão palpável e vibrante que se instala e que dá prazer alimentar. Apesar de pouco frequente, essa sensaçao persegue-me depois de ter lido Gone Girl e Dark Places, as duas obras mais recentes de Gillian Flynn. Li-os de uma assentada, um imediatamente depois do outro, ávida de qualquer coisa para encher o buraco que Gone Girl deixou na minha esperança na humanidade.
Digo isto já para que estas leituras não firam susceptibilidades desprevenidas: estes livros não são felizes. Não é algo que se leia para levantar o espírito, mas antes para concretizar um prazer negro de olhar para dentro do poço da mente humana e de ver que afinal a água não é tão límpida e imóvel como se pensava.
Gone Girl é a história de um Nick e Amy Dunne, um casal de escritores sediados em Nova Iorque que se muda para a América profunda depois de vicissitudes familiares e económicas. Na manhã do 5º aniversário do seu casamento, Amy desaparece sem deixar rasto - a porta aberta e o gato na rua - e Nick é rapidamente alvo das mais radicais acusações. Esta é a superfície aparentemente estável e transparente. Mas no fundo revolvem-se as lamas de coisas que ficaram por dizer e de histórias mal contadas. A água vai enturvando. Os temas são simples e clássicos: o casamento, o dinheiro, a cobardia, os elitismos sociais, a capacidade do ser humano de inflictir dor no seu semelhante, o preconceito, as más decisões, a honestidade (ou falta dela). Nada de novo, que não tenha sido analisado até se ver o osso, mas esta obra expõe-nos de forma tão crua que dói e nem sabemos bem onde, como ver alguém nu e ferido à chuva. Estas são páginas que exploram até que ponto vão as intenções humanas.
Dark Places, sendo semelhante ao anterior, ilumina um diferente conjunto de questões. Ben Day, de 15 anos, é preso pela chacina da mãe e de duas irmãs. Mal visto pela comunidade, com fama duvidosa, companhias pouco desejáveis, não deixa qualquer dúvida que é o resposável pela morte da família. 24 anos depois, Libby Day, a irmã mais nova de Ben e a única sobrevivente do massacre, revê o seu testemunho, peça central no caso contra o irmão. A história tem três pontos de vista principais, o de Libby, o de Ben e o da sua mãe Patty, mas a mensagem que trazem é a mesma: o ser humano é fraco, é imperfeito, e sabe que não tem redenção. Abordam-se outros temas, como a pobreza, a histeria dos rituais satânicos e a toxicodependência, que se conjugam numa trama que é maravilhosamente gráfica no seu carácter horribilis, profundamente perturbadora.
A escrita de Flynn é um perfeito intermédio entre simples e complexo, que envolve sem darmos por isso, tão natural ao inserir o leitor no pensamento dos intervenientes na história. Chega a ser desconfortável a intimidade que temos com as motivações das personagens, como se estivéssemos a interromper um momento solene que não é nosso, nunca vai ser nosso. É um noir delicioso, quase vampírico na maneira que usa a nossa força vital e as nossas crenças contra nós ao alimentar as personagens. Não é para todos, mas abala as consciências de muitos, incluindo a minha.
(Ambos os livros estão a ser adaptados ao cinema. Podem encontrar aqui e aqui os trailers de Gone Girl, realizado por David Fincher.)